Audiência na Aleac denuncia feminicídio psicológico e omissão do Estado no caso Joyce Araújo

Parlamentares, instituições e familiares cobram justiça, políticas eficazes e responsabilização de agentes públicos pela ausência de acolhimento à jovem, vítima de violência emocional e institucional
A Assembleia Legislativa do Acre (Aleac) realizou uma audiência pública nesta segunda-feira (16), marcada pela dor, indignação e fortes cobranças em torno do caso de Joyce Araújo, jovem que morreu por suicídio após sofrer uma sequência de violências emocionais e psicológicas, caracterizando o que autoridades e especialistas já reconhecem como feminicídio psicológico e institucional. A reunião, proposta pela deputada estadual Michelle Melo (PDT), reuniu representantes do Ministério Público, OAB, Defensoria Pública, Governo do Estado e familiares da vítima, com o objetivo de garantir memória, reparação e não repetição.
“Joyce não pode virar estatística”
“Eu não estou aqui só como deputada, estou aqui como mulher, médica, mãe, cidadã e militante da causa. Nós não estamos falando de um caso isolado. Estamos falando de uma sistemática de violência que tem induzido mulheres ao suicídio. E isso tem nome: feminicídio psicológico. Joyce foi vítima de abandono do Estado, da negligência institucional, da falta de sensibilidade com o sofrimento feminino”, afirmou Michelle Melo na abertura da audiência.
A parlamentar também anunciou que já protocolou na Aleac um projeto de lei que insere no currículo escolar temas como estelionato sentimental, autoestima e autocuidado. “Queremos que nossas crianças, adolescentes e jovens reconheçam os sinais de relacionamentos abusivos e que saibam se proteger”, explicou.
Relato da família escancara dor e descaso
A irmã da jovem, Jaqueline, fez um depoimento impactante, descrevendo a solidão e o sofrimento de Joyce em busca de acolhimento: “A Joyce foi desacreditada, maltratada psicologicamente, não teve apoio. Tudo o que ela sofreu foi invisibilizado. Ela fez denúncia e foi ignorada. Procurou ajuda na UPA e foi mandada para casa. E mesmo depois de ingerir 17 comprimidos na primeira tentativa, nada foi feito. Isso não pode se repetir”. A gente pede justiça. Estamos abalados, eu não consigo trabalhar, tenho provas de que minha irmã foi torturada psicologicamente. Isso não pode ficar assim”.
Defensoria e MP cobram responsabilização do Estado
A defensora pública Bárbara Abreu, do Núcleo de Proteção dos Direitos Humanos, da Mulher, Diversidade e Gênero, da Defensoria Pública do Estado, afirmou que Joyce não foi vítima apenas do ex-companheiro, mas também do próprio Estado. “A Lei 14.847/2024, já em vigor à época, determina que o SUS acolha mulheres em situação de violência doméstica. O SUS é obrigação da União, do Estado e dos municípios. A pergunta é: essa lei está sendo cumprida? Se não, quem será responsabilizado por essa omissão? Como uma mulher tenta o suicídio e não é acolhida? ”, questionou.
A promotora de Justiça, Patrícia Rêgo, acrescentou: “Fazer justiça por Joyce exige três pilares: a verdade e a memória, para que os fatos sejam esclarecidos e ela jamais seja esquecida; a reparação integral, com responsabilização exemplar do agressor e reparação à família; e a garantia de não repetição, para que o sistema de justiça pare de naturalizar a revitimização e impeça que outras mulheres passem pelo mesmo sofrimento”.
Secretaria de Estado e OAB criticam omissão estrutural
A secretária de Estado da Mulher, Márdhia El-Shawwa, lamentou a ausência de representantes da saúde na audiência. “Com tanta divulgação, tivemos um plenário com menos de 50 pessoas no momento mais cheio. Quem precisava ouvir, não estava aqui. E isso mostra o quanto o tema ainda é invisibilizado. Com tantos programas e campanhas em andamento, por que a violência contra a mulher só aumenta? ”, questionou.
A vice-presidente da OAB Acre, Thaís Moura, também reforçou: “A violência psicológica precisa ser encarada com mais seriedade. A mulher não pode mais ser vista como aquela que está inventando, exagerando ou descontrolada. Só quem já passou por isso sabe o impacto real. É preciso mudar esse estereótipo, desde quem acolhe essa mulher na delegacia até o atendimento na saúde. A violência emocional também destrói, e precisa ser tratada com o mesmo rigor que a física”.
Delegado diz que haverá apuração sobre atendimento
O delegado adjunto da Polícia Civil, Clayton Videira disse: “O caso da Joyce nos coloca diante de um novo e complexo desafio para o sistema de Justiça: um feminicídio psicológico, sem vestígios físicos, sem uma arma do crime, sem o autor no local. Mas a dor e a responsabilidade estão presentes. A Lei Maria da Penha, no artigo 5º, já reconhece que a violência emocional que leva à morte é feminicídio e deve ser punida. Que o caso da Joyce não seja mais um, mas um marco para mudar entendimentos jurídicos e fortalecer a rede de proteção às mulheres”.
MP destaca atuação nacional e alerta para esquecimento
O procurador de Justiça Oswaldo D’Albuquerque elogiou a condução da audiência e lembrou que o MPAC foi pioneiro na criação do Centro de Atendimento à Vítima (CAVE). “Não podemos permitir que crimes como esse virem rotina ou caiam no esquecimento. Precisamos manter o debate vivo. Essa dor não pode ser banalizada. Joyce precisa ser símbolo de transformação”, disse.
Ele também recordou sua atuação como ouvidor nacional do Ministério Público, quando foi criada a Ouvidoria da Mulher, e mencionou a construção do “Ciclo da Lei Maria da Penha”, que tornou o debate sobre violência de gênero uma exigência anual em todo o Ministério Público brasileiro.
Encaminhamentos: Carta Joyce e ação com igrejas
Ao final da audiência, Michelle Melo anunciou uma série de encaminhamentos. Um deles é a articulação, junto à bancada federal, para a realização de uma audiência pública sobre feminicídio psicológico no Congresso Nacional. Também será elaborada uma carta-denúncia batizada de Carta Joyce Araújo, que cobrará a tramitação urgente de projetos sobre estelionato sentimental. “Vamos colher assinaturas de todos aqui presentes e entregar no Congresso. A carta será a voz da Joyce”, afirmou.
Outra proposta da deputada foi direcionada às igrejas. “O Acre é um dos estados mais cristãos do país. Então vamos também levar essa carta aos pastores e padres. A fé deve ser canal de respeito, não de opressão. Precisamos de todas as frentes unidas para transformar essa cultura de violência”, explicou.
Michelle agradeceu aos presentes e concluiu:
“A nossa luta é para que Joyce não seja esquecida. E para que nenhuma outra mulher precise gritar até morrer para ser ouvida. Que essa audiência não seja um fim, mas o começo de uma transformação coletiva”.
Texto: Mircléia Magalhães/Agência Aleac
Fotos: Sérgio Vale
COMENTÁRIOS